Segundo o Relatório Justiça em Números do CNJ, quase 40% das ações trabalhistas no Brasil envolvem discussões sobre jornada de trabalho e horas extras. E, no meio disso tudo, há um ponto crítico que costuma passar despercebido: o intervalo interjornada.
Aliás, em se tratando de descanso entre jornadas, o maior risco pode não estar apenas na folha ou no banco de horas mal gerenciado, mas sim no momento em que o colaborador retorna de uma viagem a trabalho e, sem respeitar o intervalo interjornada, já inicia um novo expediente.
Mas, esse é um risco do qual é possível se prevenir com ajustes estratégicos na política de viagens, na comunicação entre áreas e até no controle de sobreaviso.
Neste artigo, vamos te ajudar a entender como o intervalo interjornada deve ser tratado em contextos de deslocamento profissional, o que a lei exige, como calcular penalidades e como transformar isso em compliance financeiro e trabalhista.
Continue a leitura para conferir tudo!
O que é intervalo interjornada?
O intervalo interjornada é o período mínimo de 11 horas consecutivas de descanso entre o final de uma jornada de trabalho e o início da próxima. Ou seja, se um colaborador encerra seu expediente às 20h, ele só pode iniciar um novo turno às 7h do dia seguinte, no mínimo.
Ele configura um direito trabalhista que, embora pareça simples à primeira vista, tem desdobramentos legais e financeiros bem mais complexos, especialmente em ambientes corporativos que envolvem viagens a trabalho e rotinas com sobreaviso.
Essa pausa prevista como intervalo interjornada não é apenas um tempo de descanso, ela é vista pela legislação como um período essencial para a recuperação física e mental do trabalhador. E por isso, tem proteção legal reforçada.
A violação desse intervalo pode levar a pagamento de horas extras adicionais com reflexos em DSR, FGTS, 13º salário e férias, e até indenizações por danos à saúde do colaborador.
Quando tratamos de uma rotina de viagens corporativas, é preciso ter cuidado redobrado, já que mesmo quando o colaborador está em deslocamento ou espera em aeroportos, ele está sob responsabilidade da empresa. E se essa movimentação comprometer o intervalo de 11 horas do intervalo interjornada, ela dará origem a um passivo trabalhista em potencial.
Nos próximos tópicos, vamos detalhar a legislação do intervalo interjornada, as exceções previstas e, principalmente, os pontos sensíveis que surgem quando viagens corporativas entram em cena.
O que diz a CLT sobre intervalo interjornada?
No Artigo 66 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), fica estabelecido, de forma clara, a regra básica do intervalo interjornada, determinando que “entre duas jornadas de trabalho, haverá um período mínimo de 11 horas consecutivas para descanso”.
O que muitas vezes pode gerar dúvidas é que apesar de parecerem semelhantes, o intervalo interjornada é diferente do intervalo intrajornada:
- O intervalo intrajornada é destinado à pausa para refeição ou descanso durante o expediente, sua duração mínima varia de acordo com a jornada de trabalho adotada e, apesar de não ser totalmente flexível, pode ser ajustado por convenção coletiva ou acordo individual;
- O intervalo interjornada, por outro lado, é voltado exclusivamente à recuperação do trabalhador após um dia completo de trabalho e é irrenunciável. Ou seja, trata-se de uma exigência mais rígida, não opcional e nem flexível perante a lei.
Aliás, a CLT não limita esse direito apenas ao trabalho presencial ou administrativo. Mesmo em contextos de home office, sobreaviso CLT ou trabalho externo, o intervalo interjornada deve ser garantido.
Isto significa que mesmo em casos onde o colaborador esteja em trânsito ou em atividades externas, como nos deslocamentos em viagem a trabalho, o intervalo interjornada deve ser respeitado.
Inclusive, o não cumprimento do intervalo interjornada gera penalização para a empresa.
De acordo com a Súmula 110 do TST, se o empregador não conceder as 11 horas consecutivas de descanso entre jornadas, o período suprimido deve ser pago como hora extra, com adicional de 50%. Mas, os impactos vão além desse valor e, também, refletem em encargos e benefícios.
Em empresas com múltiplas viagens a trabalho ou turnos alternados, isso pode gerar um efeito cascata de custo invisível.
E, além da condenação ao pagamento de horas extras, o desrespeito ao intervalo interjornada pode ser interpretado como infrator de normas de segurança e saúde do trabalho.
Além disso, a reincidência no descumprimento pode ainda anular acordos de compensação de jornada, banco de horas ou escalas especiais, já que esses instrumentos exigem cumprimento rigoroso dos intervalos legais.
Leia também: Viagem a trabalho: conheça seus direitos e deveres
Quais as exceções ao intervalo interjornada?
Embora o intervalo interjornada não possa ser suprimido por vontade da empresa ou por conveniência operacional, existem casos em que a legislação permite flexibilizações com base em acordos coletivos, situações emergenciais ou regimes especiais.
No entanto, essas exceções não significam isenção ao intervalo interjornada, e sim ajustes com respaldo legal, desde que observadas algumas condições bem específicas.
1. Regimes especiais autorizados por convenção coletiva
A primeira exceção ao intervalo interjornada prevista em lei ocorre quando convenções ou acordos coletivos autorizam escalas diferenciadas, como por exemplo:
- Escala 12x36;
- Turnos ininterruptos de revezamento;
- Serviços essenciais, como saúde e segurança.
Nesses casos, o intervalo interjornada pode ser adaptado, mas não pode ser suprimido completamente. É obrigatório que o acordo esteja formalizado com o sindicato da categoria, e que seja respeitada a limitação da jornada semanal e o descanso mínimo proporcional.
2. Situações emergenciais e força maior
A CLT também prevê exceções ao cumprimento do intervalo interjornada em casos de força maior ou necessidade imperiosa do serviço (Art. 61), como:
- Quebra de equipamento essencial;
- Eventos climáticos que impedem a operação;
- Ações de resposta imediata em setores críticos (TI, segurança, saúde).
Nessas situações, o empregador pode exigir trabalho contínuo, mesmo com supressão do intervalo interjornada. Mas, deve pagar as horas extras de forma integral e justificar formalmente a situação excepcional.
Neste ponto, precisamos te alertar que, diferente do que muita gente acha, o sobreaviso, isoladamente, não configura uma exceção à regra do intervalo interjornada. Ele só se torna parte de uma exceção quando integrado a uma jornada especial, com acordo coletivo válido.
E é neste ponto onde muitas empresas se confundem: manter um colaborador de sobreaviso após uma viagem de trabalho e depois escalá-lo para o expediente normal sem pausa suficiente, configura violação.
Da mesma forma, acionar colaboradores após o expediente com base na ideia de que "estavam de sobreaviso", pode configurar jornada e gerar violação do intervalo interjornada, se não houver base legal formal para isso.
Como calcular intervalo interjornada?
Como explicamos anteriormente, quando o intervalo interjornada não é respeitado, o tempo que faltou para completar as 11 horas mínimas de descanso deve ser remunerado como hora extra proporcional ao período suprimido, com adicional de, no mínimo, 50%.
A base do cálculo é simples e, para te explicar, vamos considerar o caso de um colaborador que encerrou o expediente às 22h e iniciou a próxima jornada às 6h:
1. Identifique o intervalo real entre jornadas
No caso considerado, 8 horas separam o momento em que o colaborador encerra sua jornada no dia anterior do momento em que inicia uma nova jornada consecutiva.
2. Calcule o tempo suprimido do intervalo interjornada
O tempo suprimido é a diferença de tempo entre o período exigido por lei e o período de descanso realmente gozado pelo colaborador. Ou seja:
- Intervalo legal: 11 horas.
- Intervalo concedido: 8 horas.
Tempo suprimido = Intervalo legal - Intervalo concedido = 3 horas.
3. Aplique o valor da hora extra
Para calcular a indenização do intervalo interjornada, a base de valor do cálculo será o salário-hora do colaborador, acrescido de no mínimo 50% de adicional (ou percentual maior, se houver convenção coletiva). Assim:
- Salário-hora = R$20,00
- Hora extra = 1,5 x salário-hora = R$30,00.
Sendo o valor da hora extra deste colaborador igual a R$30,00, e o tempo suprimido do intervalo interjornada igual a 3 horas, o valor devido é:
3h x R$30,00 = R$90,00.
4. Inclua os reflexos
Por fim, é preciso calcular a repercussão do valor das horas suprimidas do intervalo interjornada em:
- DSR (Descanso Semanal Remunerado)
A regra do cálculo do DSR é: soma-se o total de horas extras no mês, divide-se pelos dias úteis trabalhados e multiplica-se pelos domingos e feriados. Assim, no caso considerado, supondo 22 dias úteis e 8 dias de descanso no mês:- R$90,00 / 22 dias úteis = R$4,09
- R$4,09 × 8 DSRs = R$32,72 de reflexo em DSR
- Férias + 1/3 constitucional
Considera-se o valor mensal das horas extras como base de cálculo proporcional:- R$90,00 × 1/12 = R$7,50
- 1/3 sobre R$7,50 = R$2,50
- Total de reflexo em férias: R$10,00
- 13º salário
A lógica é semelhante à das férias:
- R$90,00 × 1/12 = R$7,50
- FGTS (8%)
- 8% sobre R$90,00 = R$7,20
- INSS e encargos sobre a folha
Os valores variam conforme a alíquota da empresa. Considerando o valor mais comum de 20% patronal, mas com base em R$ 90,00:- 20% sobre R$90,00 = R$18,00 adicionais de custo previdenciário
5. Some todos os valores
Por fim, somando tudo, chegamos ao valor total que a indenização do intervalo interjornada para este colaborador, custam ao caixa da empresa:
R$ 90,00 (hora extra) + R$ 32,72 (DSR) + R$ 10,00 (férias) + R$ 7,50 (13º) + R$ 7,20 (FGTS) + R$ 18,00 (INSS) = R$ 165,42
Viagens a trabalho descaracterizam o intervalo interjornada?
Não, viagens a trabalho não descaracterizam o intervalo interjornada. Conforme previsto no Art. 66 da CLT, o fato de o colaborador estar em trânsito não exclui o direito às 11 horas consecutivas de descanso entre jornadas.
A jurisprudência entende que, enquanto o empregado está em viagem a serviço, ele está à disposição da empresa.
Assim, o deslocamento, os períodos de espera, conexões longas, check-ins em hotel e qualquer outra etapa vinculada à agenda corporativa podem ser considerados como tempo útil ao trabalho, dependendo do grau de exigência da empresa e da limitação de liberdade do colaborador.
Por isso, mesmo que o colaborador tenha passado o dia viajando e não executado nenhuma tarefa operacional, ele continua tendo direito ao intervalo interjornada integral e não pode iniciar uma nova jornada formal de trabalho até que as 11 horas de descanso sejam respeitadas.
Isso vale para qualquer função, seja um analista, gerente ou executivo.
E aqui mora uma das maiores armadilhas na gestão de viagens corporativas: confundir o deslocamento com descanso.
Muitas empresas programam voos de madrugada, reuniões logo após o desembarque ou agendas intensas de um dia para o outro, sem considerar o impacto disso sobre o intervalo interjornada. Esse hábito acaba gerando passivos ocultos, riscos de autuação e ações trabalhistas com base em jornada exaustiva.
Posso incluir cláusulas sobre intervalo interjornada no contrato ou política de viagens?
Uma forma de se proteger juridicamente é incluir cláusulas sobre a gestão da jornada em viagens a trabalho em contratos de trabalho, acordos coletivos e especialmente em políticas internas de viagens corporativas.
No entanto, é fundamental entender que essas cláusulas não eliminam a obrigatoriedade do intervalo interjornada. O que elas devem fazer é trazer clareza, prevenção e alinhamento de expectativas, mas não afastam os direitos garantidos pela CLT.
Na prática, em relação ao intervalo interjornada, você pode incluir em seu contrato ou política interna:
- Orientações sobre planejamento de viagens, definindo janelas mínimas de descanso após voos ou longos deslocamentos;
- Procedimentos em caso de viagens noturnas ou eventos após o expediente, incluindo diretrizes claras para compensações ou início postergado da jornada seguinte, respeitando o intervalo interjornada;
- Previsão de sobreaviso ou plantão, apenas se houver acordo coletivo e condições específicas para esse regime;
- Regras sobre registros de jornada em viagens, orientando como e quando o colaborador deve registrar o ponto;
- Política de reembolso e diárias atreladas ao tempo real de deslocamento e permanência. Isso ajuda a evitar omissões ou distorções nos cálculos de tempo à disposição da empresa.
Leia também: Self compliance: o que é e como funciona para viagens corporativas?
E lembre-se: ao redigir cláusulas contratuais ou políticas de viagem, evite termos genéricos como “flexibilidade total de jornada” ou “trabalho conforme demanda durante viagens”. Isso pode ser interpretado como tentativa de mascarar sobrecarga ou desrespeito à legislação.
Use sempre linguagem objetiva, validada pelo setor jurídico e, se possível, prevista em acordo coletivo da categoria.
Como planejar viagens sem ferir o intervalo interjornada?
Para planejar viagens a trabalho sem infringir o intervalo interjornada, é essencial garantir que exista, de fato, um período de 11 horas consecutivas entre o fim de uma jornada e o início da próxima.
Na prática, significa revisar agendas, roteiros de viagem, prazos de deslocamento e, até mesmo, como você gerencia despesas corporativas, já que elas podem indicar quando o colaborador esteve à disposição da empresa mesmo fora do ponto.
Listamos abaixo 5 boas práticas que te ajudam a assegurar o intervalo interjornada no planejamento de viagens corporativas:
1. Mapeie a jornada completa, não só a agenda de trabalho
Inclua deslocamentos, conexões, traslados, check-ins e eventuais tempos de espera.
A jornada começa no momento em que o colaborador está efetivamente à disposição da empresa, mesmo sem executar tarefas operacionais. Assim, você terá uma visão mais realista do itinerário para evitar qualquer impacto no intervalo interjornada.
2. Evite deslocamentos que invadam o período de intervalo interjornada
Planeje voos, traslados e reuniões de forma que as 11 horas de descanso do intervalo interjornada sejam respeitadas.
Evitar madrugadas, retornos imediatos ou compromissos no dia da chegada é um ganho em compliance e em produtividade também.
3. Crie uma política de viagens com regras claras de jornada
Formalize orientações sobre horários, períodos mínimos de descanso, destacando a obrigatoriedade do intervalo interjornada, e protocolos para viagens noturnas.
Isso facilita a tomada de decisão de quem aprova ou organiza a viagem e protege a empresa em auditorias ou ações judiciais.
4. Utilize ferramentas de controle de despesas com registro de deslocamento
Soluções que automatizam o reembolso de km rodado, por exemplo, ajudam a entender não só os custos da viagem, mas também os limites da jornada envolvida. Isso porque essas ferramentas permitem rastrear com mais precisão quando o colaborador esteve em trânsito a serviço da empresa.
Contar com dados precisos, como esses, é o diferencial que permite criar um planejamento de viagem seguro e totalmente alinhado com a legislação.
Afinal, com essas informações você consegue antecipar situações em que o intervalo interjornada pode ser comprometido e agir preventivamente, com base em cenários realistas, realizando ajustes de agenda ou compensações.
Leia também: Controle de KM: como fazer a gestão e cálculo do valor de reembolso
5. Treine gestores e aprovadores sobre os impactos legais do intervalo interjornada
Capacitar quem organiza ou aprova viagens sobre o que é intervalo interjornada, o que caracteriza tempo à disposição e quais são os riscos trabalhistas é uma forma eficaz de evitar decisões apressadas que geram custo e exposição jurídica.
Uma prática útil é criar checklists ou materiais de apoio rápidos, como infográficos, fluxogramas ou manuais de 1 página que expliquem, com exemplos reais da empresa, como montar uma agenda de viagem segura.
Agora que você já sabe o que fazer para evitar passivos trabalhistas e financeiros relacionados ao intervalo interjornada, é hora de colocar as boas práticas em ação!
Aproveite para conferir nosso artigo “Como organizar as despesas com viagens de funcionários?” e deixar sua empresa ainda mais protegida juridicamente.